Por Vitor Tokoro – 12-mar-2016 / 18:05
Crédito foto: Ângela Raymundo
Enquanto caminho sem rumo pela cidade observo o movimento dos carros, das bicicletas e das pessoas.
o Teatro Nacional tá logo ali, ensanduichado entre a rodoviária e o Congresso. Às vezes eu acho que ninguém o vê. É um incompreendido. Abandonado e sozinho. Isso reflete muito o meu eu de sempre.
Chove, faz um friozinho raro em Brasília no fim do verão. É lá que eu vou nas noites de domingo. Um dia, choro, outro dia orquestra de câmara, dança, poesia. Muito não me interessava, ma eu estava sempre lá. De graça. Saio da 405 sul, onde moro, atravesso a L2, driblo as baratas no meio do caminho e busco o caminho menos molhado. Meu pé sempre gela se fica molhado. Acho que é para o coração continuar quente, apesar de solitário. A luz amarelada da rua não é suficiente para ter uma caminhada segura, e me deixa mais melancólico. Venço o medo e vou. O ônibus não passa. Domingo à noite é sempre assim, quase ninguém no ponto. Normalmente uma empregada doméstica, geralmente mais velha, mais conformada diante do que a vida lhe mostrou e ofereceu. Ela retorna ao lar uma vez por semana, sempre aos domingos. Dorme na casa dos patrões durante a semana. Só que hoje teve festa e almoço de família e ela precisou ficar. Não vê a hora de chegar em casa, mas os dois filhos já devem estar dormindo. Então, ela chega, os beija, lava a roupa, estende no varal, faz um café e come com o pedaço de bolo que trouxe do que sobrou da casa da patroa. Não se esquece de deixar os outros dois pedaços separados para os filhos, assim não dá briga. Amanhã começa tudo de novo.
O ônibus chega, eu a deixo entrar primeiro, ela agradece. Não está acostumada com gentilezas. Tá quase vazio. Descemos na rodoviária e cada um toma seu rumo. O meu é o do Teatro. Casais bonitos, bem vestidos, carros reluzentes vão chegando. As pessoas me olham, quem é esse? Isso que dá fazer espetáculo sem cobrar nada.
Que lugar lindo. À meia luz fica mais lindo ainda, não se percebem as imperfeições. Acho que, por isso, os amantes preferem a meia luz. Fica aquela aura de mistério, vamos nos descobrir, vamos nos entregar, devagar, não sei se estou seguro, tenho tremedeira diante de mulher nova. Será que o oposto também ocorre? Não sei, tenho vergonha de perguntar.
Escolho um lugar no alto. O Teatro Nacional tá quase vazio. Um luxo poder escolher onde vou sentar. Apesar de ser um dos poucos que foi sozinho, de me sentar longe de todos (timidez?), quando a luz se apaga eu me entrego e me realizo. Viajo ao som da música bem executada. Será que os músicos estão felizes por estarem tocando no Nacional ou será que estão tristes porque a casa está quase vazia? Ou os dois? Nunca saberei. O violoncelista mora em Taguatinga. Imagina ter que sair do Teatro, guardar aquele imenso instrumento e ter que correr pra pegar o último ônibus do domingo?
Aqui tenho que falar do Zé. Pessoa espirituosa, grande tocador de violão, cavaquinho, bandolim, qualquer coisa de corda que você coloca no colo dele. Às sextas, saímos do trabalho com o resto do grupo em busca de um bar que não tenha música. Nós somos o conjunto. Me incluo, claro, apesar de não tocar nada. Aprendi um pouco de tamborim, ganzá, reco-reco pra fazer numeração. Fim de noite, vamos embora. O papo tá bom. Pra que ir pra casa? Olha, o último ônibus vai sair meia-noite e meia. Ou a gente fica bebendo até às cinco ou vou pegar este. Bóra pro Conic. Sentamos no pé sujo mais barato, tá gelada?, na frente de um inferninho. Oi amores, vocês não vão entrar? Não, não temos dinheiro pra isso. Vamos só é tomar cerveja mesmo e bater papo. Vou sair às três. Posso tomar uma com vocês? Minha amiga também vem. Claro, mas já avisamos que não temos dinheiro. A gente só quer companhia mesmo e tomar uma ante de ir pra casa. O papo corre, eu só olho. Em cima dos meus dezenove anos, tudo é novo pra mim. Observo, observo. O Zé diz, tá gostando? Tô. Tá assustado, com medo? Um pouco. Relaxa, aqui só tem gente boa. O dia tá amanhecendo. A gente falou que ia tomar até às cinco, já são quase sete. Verdade. Vamos embora. Assim se fez mais uma sexta.
Que música boa. Não sabia direito o poder da acústica numa apresentação. Comecei a prestar mais atenção, nas nuances dos sons, como cada instrumento toca cada um dos sentidos quando me permito sentir.
Acabou. Agora é a segunda parte da ansiedade (timidez?, já falei isso?). A luz se acende, as pessoas começam a se levantar. Eu fico. Como se no cinema lendo os letreiros finais. Cada nome é uma pessoa com sua função desempenhada. Qual será minha função neste mundo? Um nome num letreiro?
É, preciso sair. Já estão tocando os últimos pra fora. Também estes trabalhadores devem correr pra rodô pra pegar seu último busão. Taguatinga, Ceilândia, Águas Lindas, Valparaiso, São Sebastião. Guará não. Guará é muito chique pra quem trabalha como segurança, faxineiro e caixa no Teatro.
Parou de chover? Será que eu volto a pé? Se tivesse tomado umas acho que sim. Mas no Teatro eu não bebo. Vou com a roupa que tenho. Uma calça jeans, um tênis velho de basquete, se colocar o mais novo de ir trabalhar corro o risco de ser assaltado, uma camiseta sem passar porque não tenho ferro e uma camisa de flanela xadrez pra proteger do vento e da chuva. To achando que vou pegar busão. Desço na plataforma quase vazia da rodoviária, é domingo fim de
fim de semana. Espero. Ah, vou a pé. Saio com o passo apressado pra não dar mole. Se quiser me pegar vai ter que correr. Sabe, acho que quando chego no Teatro as pessoas devem se sentir ameaçadas. Sozinho, cabeludo, mal vestido. Mas pelo menos tô cheirosinho. Até os dentes escovei antes de sair de casa. A noite tá agradável. Ficou aquela bruma e o silêncio penetrante. Venço, de
novo, meus medos e me lanço na escuridão. Brasília não é muito boa pra caminhar. Enquanto contemplo tudo aquilo, me vejo pela primeira vez na vida só, numa cidade estranha e cativante. Acho que estou desenvolvendo uma relação de amor com este lugar esquisito. Penso, penso, olho, desvio da tampa de bueiro aberta, piso numa barata, não tem como não não pisar, são muitas. Olho pro lado, não vejo ninguém. Pra frente, pra trás. Sinto uma paz tomar conta de mim. Sou a única pessoa nesta cidade.
Cheguei. Abro a porta do saguão, subos os dois lances de escada de dois em dois degraus. Abro a porta do apê que divido com mais outros dois colegas. Um não tá. O outro já dormiu. Este sempre me fala, Teatro Nacional? Não, obrigado. Vou assistir o fantástico e dormir. Tenho que acordar cedo pra trabalhar.
Teatro Nacional. Valeu! Mais uma vez.
Como um pedaço de bolo que escondo no meu armário porque senão os outros comem. Tomo um copo de leite. Escovo os dentes. Tiro a colcha do janelão que me serve de cortina. O tênis e o calção já estão do lado da cama. Amanhã acordo às cinco e trinta e vou correr no eixão.
Minha (pequena) cama, na verdade um sofazinho que a Glória me deu quando mudei, fica embaixo da janela. Deito com a cabeça virada pro céu. Olho e lá estão as estrelas. Céu de Brasília. Neste país melhor lugar não há.