Extraido de “A Gaia Ciência” – Friedrich Nietzsche
Contribuição Gustavo Baião
1. CONVITE
Experimentem, pois, minhas iguarias, comilões!
Amanhã haverão de achá-las bem melhores,
E excelentes depois de amanhã!
Se quiserem mais
– pois bem, minhas sete coisas antigas
Me darão coragem
Para fazer sete novas.
2. MINHA FELICIDADE
Depois de estar cansado de procurar
Aprendi a encontrar.
Depois que um vento se opôs a mim
Navego com todos os ventos.
3. INTRÉPIDO
Onde quer que estejas, cava profundamente;
A teus pés está a nascente.
Deixa os obscurantistas gritarem:
“Embaixo está sempre – o inferno!”
4. DIÁLOGO
A – Estive doente? Estou curado?
E quem foi então meu médico?
Como pude esquecer de tudo isso?
B – Só agora acredito que estejas curado,
Pois está bem de saúde aquele que esqueceu.
5. Aos VIRTUOSOS
Até mesmo nossas virtudes devem ter o passo leve:
Para ir e vir, como os versos de Homero.
6. SABEDORIA DO MUNDO
Não fiques embaixo
Não subas muito alto
O mundo é sempre mais belo
Visto à meia altura.
7. VADE MECUM – VADETECUM
Meu porte e meus discursos te atraem,
Tu me segues, me segues passo a passo?
Segue-te a ti mesmo fielmente:
– E assim me seguirás! – Suavemente, muito suavemente!
8. NA ÉPOCA DA TERCEIRA MUDANÇA DE PELE
Já minha pele se racha e cai,
Já meu desejo de serpente,
Apesar da terra absorvida,
Ambiciona terra nova;
Já rastejo entre as pedras e a erva,
Faminto, em meu rasto tortuoso,
Pronto para comer o que sempre comi:
Tu, alimento da serpente, tu, a terra!
9. MINHAS ROSAS
Sim! minha felicidade – quer tomar feliz!
Toda felicidade quer tomar feliz!
Querem colher minhas rosas?
É preciso que se abaixem, que se escondam,
Entre os espinheiros, os rochedos,
E lambam muitas vezes os dedos!
Pois minha felicidade é zombadora!
Pois minha felicidade é pérfida!
Querem colher minhas rosas?
10. O DESDENHOSO
Como ando semeando ao acaso
Me tratam de desdenhoso.
Aquele que bebe em copos muito cheios
Os deixa transbordar ao acaso –
Não continuem a pensar mal do vinho.
11. A PALAVRA AO PROVÉRBIO
Severo e suave, grosseiro e fino,
Familiar e estranho, sujo e puro,
Lugar de encontro dos loucos e dos sábios:
Eu sou, quero ser tudo isso,
Ao mesmo tempo pomba, serpente e porco.
12. A UM AMIGO DA LUZ
Se não quiseres que teus olhos e teus sentidos se enfraqueçam
Corre atrás do sol – à sombra.
13. PARA OS DANÇARINOS
Gelo liso,
Um paraíso,
Para quem sabe dançar bem.
14. O CORAJOSO
Mais vale uma inimizade de boa madeira
Que uma amizade feita de madeira colada!
15. FERRUGEM
Necessitas também de ferrugem: ser cortante não basta!
Senão dirão sempre de ti: “É muito jovem!”
16. PARA AS ALTURAS
“Como vou escalar melhor a montanha?”
Sobe e não penses nisso!
17. SENTENÇA DO HOMEM FORTE
Nunca perguntes! Para que serve gemer!
Agarra, peço-te, agarra sempre!
18. ALMAS PEQUENAS
Odeio as almas pequenas:
Não têm nada de bom e quase nada de mau.
19. O SEDUTOR INVOLUNTÁRIO
Para passar o tempo, lançou uma palavra no ar,
E no entanto, por causa dela, uma mulher caiu.
20. A CONSIDERAR
Um duplo desgosto é mais fácil de suportar
Que um único: não queres experimentar?
21. CONTRA A VAIDADE
Não te infles, caso contrário,
A menor picada te fará explodir.
22. HOMEM E MULHER
“Teu coração bate por uma mulher? Rapta-a!”
Assim pensa o homem; a mulher não rapta, rouba.
23. INTERPRETAÇÃO
Se vejo claro em mim, eu me envolvo em mim mesmo,
Não posso ser meu próprio intérprete.
Mas aquele que se eleva sobre seu próprio caminho
Leva com ele minha imagem à luz.
24. REMÉDIO PARA O PESSIMISTA
Tu te queixas porque não encontras nada a teu gosto?
Então, são sempre teus velhos caprichos?
Ouço-te praguejar, gritar, escarrar –
Perco a paciência, meu coração se despedaça.
Ouve, meu amigo, decide-te livremente,
A engolir um pequeno sapo gordo,
Depressa e sem sequer olhar para ele! –
É remédio soberano contra a dispepsia.
25. ORAÇÃO
Conheço o espírito de muitos homens
E não sei quem eu mesmo sou!
Meu olhar está demasiado próximo de mim –
Não sou aquilo que contemplo.
Saberia ser-me mais útil,
Se estivesse mais distante de mim.
Não tão longe, decerto, como meu inimigo!
Meu amigo mais próximo já está demasiado longe –
Entretanto, a meio caminho entre ele e mim!
Adivinham o que estou pedindo?
26. MINHA DUREZA
Devo subir mais de cem degraus
Devo subir, eu os ouço dizer:
“És duro! Será que somos de pedra então?” –
Preciso subir mais de cem degraus,
E ninguém quer servir de degrau.
27. O VIAJANTE
“Acabou o atalho! Abismo em volta e silêncio de morte!”
Assim o quiseste! Por que deixaste o atalho?
Atrevido! É o momento! O olhar frio e claro!
Estás perdido se acreditas no perigo.
28. CONSOLO PARA OS PRINCIPIANTES
Vejam a criança, os porcos grunhem em torno dela,
Abandonada a si mesma, os artelhos encolhidos!
Só sabe chorar e chorar mais ainda –
Será que um dia vai aprender a ficar de pé e a caminhar?
Não tenham medo! Muito breve, penso,
Poderão ver a criança dançar!
Logo que conseguir manter-se de pé,
Haverão de vê-la caminhando de cabeça para baixo.
29. EGOÍSMO DAS ESTRELAS
Se eu não girasse sem cessar em torno de mim mesmo
Como um tonel que se rola,
Como suportaria sem pegar fogo
Ao correr atrás do sol ardente?
30. O PRÓXIMO
Não gosto que meu próximo esteja muito perto de mim:
Que vá embora para longe e para as alturas!
Senão, como faria para se tornar minha estrela?
31. O SANTO MASCARADO
Para que tua felicidade não nos oprima,
Tu te encobres com a astúcia do diabo,
Com o espírito do diabo, com o traje do diabo.
Mas em vão! De teu olhar
Cintila a santidade.
32. O SERVO
A – Para e escuta: o que e que conseguiu enganá-lo?
O que é que ele ouviu zunir em seus ouvidos?
O que é que conseguiu abatê-lo desse modo?
B – Como todos aqueles que carregaram correntes,
O ruído das correntes o persegue por toda parte.
33. O SOLITÁRIO
Detesto tanto seguir como conduzir.
Obedecer? Não! E governar, nunca!
Aquele que não é terrível para si, não incute terror a ninguém,
E só aquele que inspira terror pode comandar os outros.
Já detesto guiar-me a mim próprio!
Gosto, como os animais das florestas e dos mares,
De me perder durante um bom tempo,
Acocorar-me, sonhando, em desertos encantadores,
De me chamar a mim mesmo, por fim, de longe,
E de me seduzir a mim mesmo.
34. SÊNECA ET HOC GENUS OMNE
Escrevem e escrevem sempre sua insuportável
E sábia cantilena
Como se se tratasse de primum scribere,
deinde philosophari
35. GELO
Sim, às vezes faço gelo:
É útil para digerir!
Se tivesses muito que digerir,
Ah! como gostarias de meu gelo!
36. ESCRITOS DE JUVENTUDE
O alfa e o ômega de minha sabedoria
Me apareceram: que foi que ouvi? …
Já não ressoam da mesma maneira,
Já não ouço senão os Ah! e os Oh!
Velhas coisas insuportáveis de minha juventude.
37. PRECAUÇÃO
Não é bom viajar nessa região;
E se tens espírito, tem cuidado em dobro!
Vão te atrair e vão te amar a ponto de te dilacerarem.
Espíritos exaltados – sempre lhes falta espírito!
38. O HOMEM PIEDOSO FALA
Deus nos ama porque nos criou! –
“Foi o homem que criou Deus!” – É sua resposta sutil.
E não havia de amar o que criou?
Porque o criou, deveria negá-lo?
Isso manca, como com o casco do diabo.
39-NO VERÃO
Deveremos comer nosso pão
Com o suor de nosso rosto?
Quando se está molhado de suor é melhor não comer nada,
Segundo o sábio conselho dos médicos.
Sob a canícula, o que nos falta?
Que quer esse sinal de fogo?
Com o suor de nosso rosto
Devemos beber nosso vinho.
4O. SEM VONTADE
Seu olhar é sem vontade e vocês o honram por isso?
Pouco lhe importam suas honras;
Tem o olho da águia, olha para longe,
Não os vê! Apenas vê estrelas, estrelas!
41. HERACLITISMO
Toda a felicidade na terra
Amigos, está na luta!
Sim, para tomar-se amigo
É necessária a fumaça da poeira!
Em três casos os amigos estão unidos:
Irmãos diante da miséria,
Iguais diante do inimigo,
Livres – diante da morte!
42. PRINCÍPIO DOS DEMASIADO SUTIS
Melhor andar na ponta dos pés
Do que com quatro patas!
Melhor passar pelo buraco da fechadura
Do que pelas portas abertas!
43. CONSELHO
Aspiras à glória?
Escuta, pois, um conselho:
Renuncia a tempo, livremente,
À honra!
44. ÁTÉ O FUNDO
Um pesquisador, eu? – Não empregues esta palavra! –
Sou apenas muito pesado – por excesso de libras!
Nada mais consigo senão cair sem cessar
Para cair, finalmente, até o fundo.
45. PARA SEMPRE
“Venho hoje porque me convém” –
Assim pensa cada um que vem para sempre.
Que lhe importa se o mundo lhe diz:
“Vens muito cedo! Vens muito tarde!”
46. JUÍZO DOS HOMENS FATIGADOS
Todos os esgotados amaldiçoam o sol:
Para eles o valor das árvores – é a sombra!
47. DECLÍNIO
“Ele declina, ele cai” – gritam vocês zombadores;
A verdade é que ele se inclina em direção a vocês!
Seu excesso de felicidade foi sua desgraça,
Seu excesso de luz segue a obscuridade de vocês.
48. CONTRA AS LEIS
A partir de hoje penduro
Ao pescoço o relógio que marca as horas:
A partir de hoje cessam seu curso as estrelas,
O sol, o canto do galo, as sombras;
E tudo aquilo que o tempo jamais anunciou
Está agora mudo, surdo e cego:
– Para mim toda a natureza se cala
Ao tique-taque da lei e da hora.
49. O SÁBIO FALA
Estrangeiro para o povo e, no entanto, útil ao povo,
Sigo meu caminho, ora sol, ora nuvens –
E sempre por cima desse povo!
50. DE CABEÇA PERDIDA
Agora ela tem espírito – Como teria conseguido encontrá-lo?
– Por ela um homem acaba de perder a cabeça,
Seu espírito era rico antes de perder seu tempo:
Foi para o diabo – não! para a mulher!
51. PIEDOSO ANSEIO
“Que todas as chaves
Se percam, pois, depressa,
E que em todas as fechaduras
Possa servir uma chave-mestra!”
Assim pensa a todo instante
Aquele que é ele próprio – uma chave-mestra.
52. ESCREVER COM O PÉ
Eu só escrevo com a mão,
Mas o pé quer sem cessar escrever também.
Sólido, livre e corajoso quer fazer isso,
Ora através dos campos, ora sobre o papel.
53. HUMANO DEMASIADO HUMANO, LIVRE
Melancólico, tímido, enquanto olhas para trás,
Confiante no futuro, logo que tens confiança em ti mesmo,
Ave, devo te contar entre as águias?
És tu a ave de Minerva?
54. A MEU LEITOR
Boas maxilas e bom estômago –
É o que te desejo!
Depois de teres digerido meu livro,
Certamente conseguirás entender-te comigo
55. O PINTOR REALISTA
“Totalmente fiel à natureza!” – Como consegue fazer isso?
Quando é que porventura a natureza se submete a um quadro?
Infinita é a menor parcela do mundo!
– Finalmente pinta o que dela lhe agrada.
E o que é que lhe agrada? Aquilo que sabe pintar!
56. VAIDADE DE POETA
Dêem-me cola, e eu mesmo
Encontrarei a madeira para colar!
Encerrar um sentido em quatro rimas insensatas –
Isso não é por acaso pequena vaidade!
57. O GOSTO DIFÍCIL
Se me deixassem escolher livremente,
Escolheria de bom grado um pequeno lugar,
Precisamente no meio do paraíso:
E, melhor ainda – diante de sua porta.
58. O NARIZ TORCIDO
O nariz avança insolente
No mundo. A narina se infla –
É por isso que, rinoceronte sem chifre,
Homem altivo, tu cais sempre para a frente!
E unidas sempre encontramos essas duas coisas:
A altivez rígida e o nariz torcido.
59. A CANETA RABISCA
A caneta rabisca: que inferno!
Será que estou condenado a rabiscar?
Mas bravamente tomo meu tinteiro,
E escrevo em grandes ondas de tinta.
Que belos fluidos largos e cheios!
Como tudo o que faço tem êxito!
A escrita, é verdade, não está realmente nítida –
Que importa! Quem é que lê o que escrevo?
60. HOMENS SUPERIORES
Este se eleva! – é preciso elogiá-lo!
Mas aquele vem sempre lá de cima!
Vive mesmo acima do louvor,
Ele é do alto!
61. O CÉTICO FALA
A metade de tua vida já passou,
O ponteiro avança, tua alma estremece!
Há muito tempo já ela gira,
Ela procura e não encontrou – e ainda hesita?
A metade de tua vida passou:
Foi dor e erro, de hora em hora!
Que procuras ainda? Por quê?
– É justamente o que procuro – o que eu procuro!
62. ECCE HOMO
Sim, sei de onde venho!
Insatisfeito, como a labareda,
Ardo para me consumir.
Aquilo em que toco torna-se luz,
Carvão aquilo que abandono: Sou certamente labareda.
63. MORAL DE ESTRELA
Predestinada à tua órbita,
Que te importa, estrela, a escuridão?
Rola, bem-aventurada, através desse tempo!
Que a miséria te seja estranha e distante!
Ao mundo mais longínquo destinas tua claridade:
A piedade deve ser pecado para ti!
Admites somente uma única lei: ser pura!